A essa hora, enquanto pelo arvoredo mudo os mais agitados pardais dormiam, e o Sol mesmo parecia repousar, imóvel na rutilância da sua luz, Jacinto, com o espírito acordado, — ávido de sempre gozar, agora que reconquistara essa faculdade — tomava com delícia o seu livro. Porque o dono de trinta mil volumes era agora, na sua casa de Tormes, depois de ressuscitado, o homem que só tem um livro. Essa mesma Natureza, que o desligara das ligaduras amortalhadoras do tédio, e lhe gritara o seu belo ambula, caminha! — também certamente lhe gritara et lege, e lê, E libertado enfim do invólucro sufocante da sua Biblioteca imensa, o meu ditoso amigo compreendia enfim a incomparável delícia de ler um livro. Quando eu correra a Tormes (depois das revelações do Severo na venda do Torto), ele findava o D. Quixote, e ainda eu lhe escutara as derradeiras risadas com as coisas deliciosas, e decerto profundas, que o gordo Sancho lhe murmurava, escarranchado no seu burro. Mas agora o meu Príncipe mergulhara na Odisseia, — e todo ele vivia no espanto e no deslumbramento de assim ter encontrado, no meio do caminho da sua vida, o velho errante, o velho Homero!
— Oh Zé Fernandes, como sucedeu que eu chegasse a esta idade sem ter lido Homero?...
— Outras leituras mais urgentes... o Figaro, Georges Ohnet... — Tu leste a Ilíada? — Menino, sinceramente me gabo de nunca ter lido a Ilíada Os olhos do meu Príncipe fuzilavam. — Tu sabes o que fez Alcibíades, uma tarde, no Pórtico, a um sofista, um desavergonhado de um sofista, que se gabava de não ter lido a Ilíada?
— Não.
— Ergueu a mão e atirou-lhe uma bofetada tremenda.
— Para lá, Alcibíades! Olha que eu li a Odisseia!
Oh! mas decerto eu a lera, corridamente, com a alma desatenta! E insistia em me iniciar, ele, e me conduzir, através do Livro sem igual. Eu ria. E rindo, pesado do almoço, terminava por consentir, e me estirava no canapé de verga. Ele, diante da mesa, direito na cadeira, abria o livro gravemente, pontificalmente, como um missal, e começava numa lenta ode sentida. Aquele grande mar da Odisseia — resplandecente e sonoro, sempre azul, todo azul, sob o voo branco das gaivotas, rolando, e, mansamente quebrando sobre a areia fina ou contra as rochas de mármore das Ilhas Divinas, — exalava, logo uma frescura salina, bem-vinda e consoladora naquela calma de Junho, em que a serra se entorpecia. Depois as estupendas manhas do subtil Ulisses e os seus perigos sobre-humanos, tantas lamúrias sublimes e um anseio tão espalhado da pátria perdida, e toda aquela intriga, em que embrulhava os heróis, lograva as deusas, iludia o Fado, tinham um delicioso sabor ali, nos campos de Tormes, onde nunca se necessitava de subtileza ou de engenho, e a Vida se desenrolava com a segurança imutável com que cada manhã sempre o Sol igual nascia, e sempre centeios e milhos, regados por águas iguais, seguramente medravam, espigavam, amadureciam... Embalado pela recitação grave e monótona do meu Príncipe, eu cerrava as pálpebras docemente. Em breve um vasto tumulto, por terra e céu, me alvoroçava... E eram os rugidos de Polifemo, ou a grita dos companheiros de Ulisses roubando as vacas de Apolo. Com os olhos logo esbugalhados para Jacinto, eu murmurava: «Sublime!» E sempre, nesse momento o engenhoso Ulisses, de carapuço vermelho e o longo remo ao ombro, surpreendia com a sua facúndia a clemência dos príncipes, ou reclamava presentes devidos ao hóspede, ou surripiava astutamente algum favor aos deuses. E Tormes dormia, no esplendor de Junho. Novamente, eu cerrava as pálpebras consoladas, sob a carícia inefável do largo dizer homérico... E meio adormecido, encantado, incessantemente avistava, longe, na divina Hélade, entre o mar muito azul e o céu muito azul, a branca vela, hesitante, procurando Ítaca...
quinta-feira, junho 14, 2007
Os Clássicos na Literatura Portuguesa (2)
Eça de Queirós, A Cidade e as Serras.
pp. 184-187:
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Clássicos na Literatura Portuguesa,
Eça de Queirós,
Homero,
Ilíada,
Odisseia
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1 comentário:
O grande Eça! Li a Cidade e as Serras numa edição do início do século XX, manualmente anotada pelo seu anterior dono, um qualquer inglês que enchia as páginas de glosas e traduções daquilo que não entendia.
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