terça-feira, julho 31, 2007

Steven Saylor, "Roma"


Steven Saylor é um dos mais interessantes cultores do romance histórico na actualidade, concretamente na ficção de temática romana. Tornou-se conhecido graças à série Roma sub Rosa, onde se acompanha o estertor da República através das aventuras de Gordiano, uma espécie de detective privado avant la lettre. Com efeito, é difícil de distinguir a linha que separa o romance histórico da narrativa de mistério, nesta Roma sub Rosa. Gordiano é a personagem principal numa narrativa feita na primeira pessoa. Movimenta-se entre os notáveis do seu tempo: trabalha para Cícero contra Sula, bebe copos com Catulo, deixa-se seduzir por Clódia, priva com César e Cleópatra, é anfitrião de Catilina, incompatibiliza-se com Crasso... E em momento nenhum parece a forçada a narrativa de Saylor. As personagens têm alma, não se limitam a ser manequins numa reconstituição histórica. Aliás este é um dos pontos fortes de Saylor: os seus mistérios são verdadeiras aulas de História Antiga, sem que em momento algum sintamos que nos está a ser dada uma aula. Os dados históricos e culturais fluem naturalmente, num registo "toda a gente sabe isto, mas vamos lá recordar para os mais distraídos" que não viola nunca a hábil verosimilhança narrativa de Saylor.

Vem isto a propósito do novo romance de Steven Saylor, Roma, editado há poucos meses, e ainda não traduzido em Português (mas vai ser, garantiram-me o autor e a tradutora, a doutora Maria José Figueiredo, do Departamento de Filosofia da FLUL). Ainda não o terminei, vou em cerca de metade. Não me está a desiludir. Pelo contrário. Roma é Saylor no seu melhor. O romance percorre a história de Roma, desde o período anterior à fundação até à morte de César. Saylor recorre a um hábil estratagema que lhe permite contar uma história que dura mil anos, mantendo sempre um fio condutor coerente. A obra está dividida em vários capítulos, histórias aparentemente independentes. O ponto de união é a história de duas famílias patrícias, os Potitii e os Pinarii, e de um talismã que vai passando de geração em geração. Mas isto é apenas o pretexto para um objectivo bastante mais ambicioso: contar alguns dos principais momentos da história de Roma. Sem que, de novo, em momento algum pareça que está a fazer aquilo que de facto está a fazer: dar-nos uma aula magistral sobre a história de Roma, tanto a histórica como a lendária. É assim que no primeiro capítulo, "A stop on the salt route (1000 BC)", se dá conta, por entre uma história de amor, ciúme e morte, da importância estratégica, do ponto de vista comercial, do território que viria mais tarde a ser Roma. No segundo capítulo, "A Demigod passes through (850 BC)", é-nos apresentada uma versão da lenda de Hércules e Caco, e do início do culto de Hércules no território da futura Roma. O terceiro capítulo, "The twins (757-716 BC)", apresenta-nos Rómulo e Remo. Assistimos à ascensão e queda de Rómulo, não de uma perspectiva lendária, mas humana e verosímil quanto baste. O quarto capítulo, "Coriolanus (510-491 BC)", narra, como o título indica, a lenda de Coriolano, bem como a queda da Monarquia e a vitória da República, sem esquecer, como é evidente, o suicídio de Lucrécia. O quinto capítulo, "The twelve tables (450-449 BC)", situa-se durante o governo dos Decênviros, e não esquece a morte de Virgínia às mãos do próprio pai, elemento à volta do qual, de resto, se constrói a narrativa. E mais não digo, pois ainda agora estou a iniciar o sexto capítulo, "The vestal (393-373 BC)".

Além da sua função de entretenimento e fruição estética, Roma tem evidentes potencialidades didácticas. Estes capítulos podem ser utilizados de forma autónoma, no ensino secundário, como motivação para o estudo das temáticas históricas e culturais neles presentes. Porque, insisto, Saylor é dono de uma erudição assinalável, apresentando a História de Roma com um rigor irrepreensível. Mas sem nunca deixar de o temperar com o seu extraordinário talento de contador de histórias. Um dos mais interessantes no campo do romance histórico.

http://www.stevensaylor.com/

segunda-feira, julho 30, 2007

Os Livros Cotovia anunciam no seu catálogo que estão no prelo mais três obras de interesse para os estudos clássicos.
No âmbito da Literatura Grega, a colectânea de Ensaios sobre Sófocles, de Maria do Céu Fialho, reúne os artigos desta Professora de Coimbra sobre o mais amado tragediógrafo grego do século V. Este título continua a sequência de publicação de ensaios sobre autores gregos, como Píndaro, Aristófanes e Eurípides, já disponíveis.
Entretanto, estão por sair duas traduções de autores da Literatura Latina.
Prepara-se a publicação da tradução feita por Pedro Braga Falcão das Odes de Horácio, o mais importante e mais apreciado lírico latino e, fora das grandes épocas clássicas, da obra O Burro de Ouro (ou Metamorfoses), escrita por Apuleio, autor do século II da nossa era. Trata-se de um importante testemunho de romance antigo. O romance é por muitos considerado (certamente por lapso) um género literário moderno que nada deve à Antiguidade: espera-se que revejam esta posição depois de lerem, por exemplo, a parte de Eros e Psique. A tradução está a ser feita por Delfim Leão, um profícuo tradutor da literatura clássica (já traduziu Plutarco, Petrónio). Lembro que já existe uma versão da Editorial Estampa, feita por Eudoro de Sousa, mas penso que esteja esgotada.

terça-feira, julho 24, 2007

Encontro de antigos alunos

A Vera Lages pediu-me que divulgasse este texto:

"Bom dia a todos!
Já lá vai praticamente um ano desde que parte do grande grupo que iniciou o Curso de Clássicas no longínquo ano dois mil se encontrou pela última vez. Alguns não chegaram a 2006; fizeram diferentes opções e seguiram outros caminhos. Contudo, ao seleccionar da minha lista de endereços os nomes a quem enviar esta mensagem, não pude deixar de recordar momentos de risos e algumas aflições que todos partilhámos.

Fica, então, o desafio: que tal encontrarmo-nos um dia para almoçar, jantar, passear, o que preferirem? Será o I ENCONTRO ANUAL DE CLASSICISTAS 2000/2006. Não vamos deixá-lo cair no esquecimento, está bem?
Um grande beijinho cheio de saudades da vossa amiga.

Vera"

sexta-feira, julho 20, 2007

Prólogos de Borges - "Publio Virgilio Marón: La Eneida"

Quem tem acompanhado a minha escrita na blogosfera sabe que ando a reler Jorge Luis Borges, agora no original. Além de ser deus, Borges era também um profundo conhecedor das coisas clássicas, a quem se perdoará no entanto uma ou outra imprecisão, precisamente por ser deus e por aos deuses tudo se perdoar. Hoje recordo o prólogo que escreveu à Eneida, na sua preciosa Biblioteca personal.
«Una parábola de Leibniz nos propone dos bibliotecas: una de cien libros distintos, de distinto valor, otra de cien libros iguales todos perfectos. Es significativo que la última conste de cien Eneidas. Voltaire escribe que, si Virgilio es obra de Homero, éste fue de todas sus obras la que salió mejor. Diecisiete siglos duró en Europa la primacía de Virgilio; el movimiento romántico lo negó y casi lo borró. Ahora lo perjudica nuestra costumbre de leer los libros en función de la historia, no de la estética.
La Eneida es el ejemplo más alto de lo que se ha dado en llamar, no sin algún desdén, la obra épica artificial, es decir la emprendida por un hombre, deliberadamente, no la que erigen, sin saberlo, las generaciones humanas. Virgilio se propuso una obra maestra; curiosamente la logró.
Digo curiosamente; las obras maestras suelen ser hijas del azar o de la negligencia.
Como si fuera breve, el extenso poema ha sido limado, línea por línea, con esa cuidadosa felicidad que advirtió Petronio, nunca sabré por qué, en las composiciones de Horacio. Examinemos, casi al azar, algunos ejemplos.
Virgilio no nos dice que los aqueos aprovecharon los intervalos de obscuridad para entrar en Troya; habla de los amistosos silencios de la luna. No escribe que Troya fue destruida; escribe Troya fue. No escribe que un destino fue desdichado; escribe De otra manera lo entendieron los dioses. Para expresar lo que ahora se llama panteísmo nos deja estas palabras: Todas las cosas están llenas de Júpiter. Virgilio no condena la locura bélica de los hombres; dice El amor del hierro. No nos cuenta que Eneas y la Sibila erraban solitarios bajo la oscura noche entre sombras, escribe:
Ibant obscuri sola sub nocte per umbram
No se trata, por cierto, de una mera figura de la retórica, del hipérbaton; solitarios y oscura no han cambiado su lugar en la frase; ambas formas, la habitual y la virgiliana, corresponden con igual precisión a la escena que representan.
La elección de cada palabra y de cada giro hace que Virgilio, clásico entre los clásicos, sea también, de un modo sereno, un poeta barroco. Los cuidados de la pluma no entorpecen la fluida narración de los trabajos y venturas de Eneas. Hay hechos casi mágicos; Eneas, prófugo de Troya, desembarca en Cartago y ve en las paredes de un templo imágenes de la guerra troyana, de Príamo, de Aquiles, de Héctor y su propia imagen entre las otras. Hay hechos trágicos; la reina de Cartago, que ve las naves griegas que parten y sabe que su amante la ha abandonado. Previsiblemente abunda lo heroico; estas palavras dichas por un guerrero: Hijo mío, aprende de mí el valor y la fortaleza genuina; de otras, la suerte.
Virgilio. De los poetas de la tierra no hay uno solo que haya sido escuchado con tanto amor. Más allá de Augusto, de Roma y de aquel imperio que a través de otras naciones y de otras lenguas, es todavía el Imperio. Virgilio es nuestro amigo. Cuando Dante Alighieri hace de Virgilio su guía y el personaje más constante de la Comedia, da perdurable forma estética a lo que sentimos y agradecemos todos los hombres.»
Jorge Luis Borges, Biblioteca personal.
Biblioteca Borges, Alianza Editorial, Madrid, 2004.
ISBN 84-206-3317-8

terça-feira, julho 17, 2007

Memórias de Agripina

A Editorial Presença acaba de relançar a obra Memórias de Agripina, da autoria de Seomara da Veiga Ferreira.

Memórias de Agripina recria em todo o seu fulgor os dias do Império Romano no século I da nossa era. A reconstituição é feita pela voz de uma mulher que foi imperatriz e mãe de Nero — uma figura de impressionante grandiosidade. Esta mulher solitária encarnou o sonho que viria a produzir o século de ouro da história do Império e a fundar e consolidar uma civilização universal cujo legado tem atravessado as eras. Agripina conta-nos as suas memórias, num tom que atinge por vezes uma grande densidade poética, em vésperas de ser assassinada pelo filho — as intrigas, os amores, a vida na corte, a impiedosa luta pelo poder e tudo o que contribui para fazer deste romance um retrato vivo da época.

quinta-feira, julho 12, 2007

Ensaios sobre Aristófanes

Já estava prometido há muito, este novo volume de ensaios em português dos Livros Cotovia, mas acaba de sair. Ensaios sobre Aristófanes é "uma colectânea que reúne textos sobre a produção do comediógrafo grego mais amado, lido e discutido de sempre". A autora é Maria de Fátima de Sousa e Silva, Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que tinha já publicado na mesma editora o volume Ensaios sobre Eurípides.
Aproveito para lembrar que a Imprensa Nacional-Casa da Moeda já publicou o primeiro volume das Comédias de Aristófanes, que reúne as traduções das peças dos autor (já existentes em obras dispersas).

quinta-feira, julho 05, 2007

Metamorfoses em análise (01)

As Metamorfoses de Ovídio passaram a ser o assunto número um deste blogue. Penso que tal se deve ao facto de Ovídio ser um autor de que se gosta com facilidade; depois, porque, com a publicação da edição da Cotovia, ficaram disponíveis em língua portuguesa duas traduções recentes e filologicamente sérias desta obra. Trata-se de um fenómeno raro em Portugal, este de tradução dos autores clássicos, mas que, que nos últimos anos — e felizmente —, tem sido mais frequente1, muito por mérito dos Livros Cotovia, que merecem todos os meus elogios2.
Porém, com a duplicação de traduções, qual é que devemos escolher? Pessoalmente, não sei, mas tenho a vantagem de ter as duas. É possível, porém, reflectir sobre elas. A comparação é difícil por diversos motivos, começando no facto de se eu fizer uma comparação exaustiva, teria de escrever uma tese de doutoramento, cheia de notas filológicas e literárias. Por isso, escolhi fazer uma breve comparação, pegando em pequenos excertos, e sobre eles fazendo comentários.
Antes de entrar nesse confronto, é importante recordar as características dos dois volumes, as qualidades e defeitos (que muitas vezes não são da responsabilidade dos tradutores!).












VegaCotovia

1) Dois volumes, capa mole.
2) Badanas com informações erradas:
Linha 2: Sâmnio por Solmona
Linha 5: “declamação” – a retórica dos sofistas por oratória
Linha 20: 9 a.C. por 8 d.C.;
3) Boa introdução, com dados importantes.
4) Notas em rodapé.
5) Subtítulos no corpo do texto.
6) Sem índice de mitos, mas há que ter em conta que este pode vir a ser introduzido no segundo volume. Como está, é difícil de localizar os mitos na obra.
7) Edição bilíngue.

1) Um grande volume de 443 páginas; capa dura, fita marcadora, sobrecapa.
2) Mapas que localizam os “principais elementos geográficos citados”.
3) Introdução muito completa; fornece linhas de leitura.
4) Notas em rodapé.
5) Guia de leitura no canto superior da página, sem interferir no texto.
6) Índice remissivo de mitos e glossário no fim. Facilita incondicionalmente a localização dos mitos na obra.
7) A tradução segue fielmente a edição de R. J. Tarrant.


1 Penso que Ovídio é, nesse sentido, um dos autores com mais “sorte”, pois, como lembrei antes, existem em (bom e fiel) português as obras Arte de Amar e Amores, vertidos pelo Professor Carlos Ascenso André, da Faculdade de Letras de Coimbra.
2 Já agora, atrevo-me a pedir ao meu colega André que acabe as traduções dos carmes de Catulo para os submeter a esta editora, pois a qualidade do trabalho que o tradutor está a fazer merecem essa distinção.

quarta-feira, julho 04, 2007

Metamorfoses

O Ricardo já tinha dado a notícia, mas só agora me chega às mãos a novíssima tradução das Metamorfoses de Ovídio, traduzidas pelo querido amigo e colega Paulo Farmhouse Alberto. Ainda não tive tempo de ler um naco suficientemente grande, mas do que li até agora a tradução é excelente (nem outra coisa seria de esperar), e o português elegante e agradável. Aqui deixo os primeiros versos.

«De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho
a falar. Ó deuses, inspirai a minha empresa (pois vós
a mudastes também), e conduzi ininterrupto o meu canto
desde a origem primordial do mundo até aos meus dias.»

Ovídio, Metamorfoses. Cotovia, 2007.
ISBN 978-972-795-206-9

domingo, julho 01, 2007

A importância dos lemas em latim

Resumo um artigo do sítio da BBC para falar de lemas de escolas e de clubes de futebol em Latim. O facto de Gordon Brown ter recordado o lema latino da sua escola secundária levou a que o jornalista Finlo Rohrer escrevesse sobre a importância desses lemas. Umas vezes eles são seguidos à risca, outras ficam ligeiramente esquecidos:
There are a select group of institutions — including schools and football clubs — where a Latin motto is almost a sine qua non. Go on the web and you can even find Latin consultants for businesses wanting a heavyweight motto.
The idea is simple, a bit of Latin spells a dose of gravitas, and a hefty slice of tradition and history.
Mottos for schools tend to be laden with concepts like effort, honesty, humility, teamwork — in short all the attributes the teachers wished the pupils really possessed.
(...) Rarely used but worth considering for schools struggling with discipline (...).

Assim, temos alguns exemplos de lemas em escolas:
Usque conabor
Floreat etona
Floreat Domus Chathamensis
Veras hinc ducere voces
Non sibi sed omnibus
lumen accipe et imperti
vir sapit qui pauca loquitur
potius sero quam numquam

O artigo continua, referindo-se aos clubes de futebol:
In football, the benchmarks are nil satis nisi optimum (…) for Everton (...) and Blackburn Rovers’ arte et labore (…).
Tottenham Hotspur got an earful from Latin lovers at the beginning of 2006 when they announced a plan to drop the motto audere est facere (…) from the badge on their strips.


Beckham latinista
David Beckham is a Latinist, reportedly having ut amem et foveam (…) and perfectio in spiritu (…) as tattoos.
But the best sporting slogan is that of football club Queen’s Park with ludere causa ludendi (…).
Oliver Taplin, a classics professor at Oxford University, says Latin mottos hark back to a time when Latin was Europe’s lingua franca.
“It is interesting that school mottos are still mostly in Latin. They come from a tradition when if you were going to be a participant in European culture, you needed to know Latin. But I've also seen mottos in French and Greek.
“Latin is so associated with the history of education. Grammar schools were started so people could learn Latin grammar.”
Mr Taplin says he has been called on to conjure up Latin mottos, including on one occasion an obscene one for a retiring air force officer.