domingo, fevereiro 04, 2007

Influências greco-latinas na língua árabe III

(Manuscrito árabe do século XIII representando Aristóteles.
British Library BL36009)

Ainda relativamente aos empréstimos greco-latinos no árabe tradicional, é curioso notar a preferência pelas consoantes enfáticas ou guturais, quando se trata de transcrever os sons gregos ou latinos.

No caso de
قلم [qălăm], o som [k] grego é transcrito não pelo equivalente exacto em árabe (ك "kaf", com o som [k]), mas por um som fortemente gutural e inexistente em grego, o [q], representado pelo "qaf" (ق). Trata-se de uma oclusiva surda, pronunciada muito no fundo da garganta, e claramente distinta de [k]. Talvez nesta caso a preferência pelo som [q] se destinasse a evitar pronúncia [ĕ] da vogal breve [ă], comum em muitos dialectos árabes antes de "lam" (ل , com o som [l]). Com efeito, o "qaf" costuma forçar o [ă] que se lhe segue a ser realmente pronunciado como [ă]. O mesmo fenómeno pode explicar a utilização do "qaf" (ق) para representar o som [k] de "castrum".

Menos compreensível parece-me a transposição do [s] de "Caesar" (القيصرية [ăl-qăySărīyă]) e de "castrum (قصر [qăSr],)". A letra usada não é o "sin" (س, com valor [s]), mas sim o "sad" (ص). Esta letra representa um som inexistente em latim ou em grego: trata-se de um [s] enfático, como que pronunciado com a boca cheia, e que altera profundamente o vocalismo anterior e posterior. No caso do [ă], este adquire, no árabe moderno, um som muito próximo do [o], e que há quem compare ao "å" sueco.

Não tenho ainda conhecimentos para compreender o que terá levado à preferência por sons consonânticos inexistentes nas línguas de origem, quando a língua de chegada, o árabe, podia ter feito uma transposição fonética bastante mais próxima do original.

---------------------

Normas de transcrição:

[ă] - [a] breve
[ā] - [a] longo
[ĭ] - [i] breve
[ī] - [i] longo
[ŭ] - [u] breve
[ū] - [u] longo
[kh] - [χ] semelhante ao "j" espanhol
[dh] - oclusiva sonora interdental semelhante ao inglês "th" em "the"
[th] - oclusiva surda interdental semelhante ao inglês "th" em "thing"
[DH] - [dh] enfático
[TH] - [th] enfático
[T] - [t] enfático, pronunciado como que com a boca cheia
[S] - [s] enfático, pronunciado como que com a boca cheia
[q] - oclusiva surda pronunciada no fundo da garganta
[º] - consoante laringal inexistente nas línguas europeias que conheço

2 comentários:

Manuel disse...

"Não tenho ainda conhecimentos para compreender o que terá levado à preferência por sons consonânticos inexistentes nas línguas de origem, quando a língua de chegada, o árabe, podia ter feito uma transposição fonética bastante mais próxima do original."

Uma questão interessante. Deixo uma hipótese (sem qualquer tipo de pesquisa): A pré-existência de palavras fonéticamente semelhantes numa língua pode condicionar a "entrada" de novos vocábulos para essa língua. Daí o ter de se recorrer a fonemas inexistentes na língua de origem, mas que ajudariam a uma desâmbiguação com palavras já existentes.

Repito é apenas uma hipótese não pesquisada, mas pode ser que ajude.

Até à próxima.

André . أندراوس البرجي disse...

Manuel, muito obrigado pela colaboração. É realmente uma hipótese a explorar, e fá-lo-ei em breve no seguimento da recolha que ando a fazer. Mas da lista de palavras que entretanto compilei (e que em breve aqui colocarei) há uma constância sem falhas: κ/c é transcrito ق, σ/s é transcrito ص. Descobri, entretanto, que o χ é transcrito, esse sim, pelo "k" árabe, o ك (kaf). Vou tentar tirar todas estas coisas a limpo, mas estou a deparar-me com uma aflitiva falta de bibliografia. Desde logo a inexistência de dicionários etimológicos árabes...