sábado, novembro 01, 2008

Ilusão cultural

Cita-se, a partir do De Rerum Natura, o artigo que Helena Matos assinou no Público do dia 28 de Outubro. Os sublinhados são meus.
Até que a casa caia
Nos últimos anos, nos ensinos básicos e secundário, institucionalizou-se uma espécie de loucura pedagógica. As disciplinas onde se transmitem saberes foram perdendo importância. Se eram difíceis, tornavam-se fáceis ou dispensáveis, como agora se viu com a Matemática. Simultaneamente todos os dias se repetia (e repete!) que os conteúdos têm de ser apelativos, pois supostamente o ensino deve ser lúdico e os alunos devem aprender sem esforço. À conta desta política de promoção do sucesso, entra-se em Engenharia sem ter estudado Matemática e a disciplina de Química corre o risco de desaparecer no ensino secundário porque os alunos não a escolhem. Idem para o Latim e para a Filosofia. Adeus equações, declinações e pensamento racional. Estuda-se um bocadinho de Psicologia e o resultado é o mesmo. Uma vez na faculdade, logo se vê. E se os engenheiros ainda vão estudando Matemática durante o curso — embora não a suficiente, porque mais de metade dos licenciados pelos 316 cursos de Engenharia existentes em Portugal chumbam no exame que a Ordem dos Engenheiros exige para o exercício da profissão — no caso dos antigos cursos de Letras, transformados cada vez mais numa versão literária das antropologias e sociologias, corre-se o risco de ver desaparecer os departamentos de Estudos Clássicos.


Noutras disciplinas, como a Física, baixou-se o nível de exigência nos exames nacionais de modo a que as estatísticas melhorassem. Mesmo nas línguas estrangeiras a opção pelo que se acha mais fácil pode levar a que se troque o francês pelo espanhol. A memorização tornou-se uma expressão maldita e arreigou-se a convicção de que o saber nasce das entranhas das crianças num fenómeno equivalente à intervenção do Espírito Santo que fez dos Apóstolos poliglotas. Os desaparecidos Trabalhos Manuais e Oficinais deram lugar às doutas tecnologias e áreas disto e daquilo, sendo que nestas disciplinas os alunos tanto podem levar o ano a fazer caixinhas de papel tipo pasteleiro, pintar cartazes para salvar a água, estudar, com detalhe, nas etiquetas da roupa a simbologia do torcer e lavar a seco, confeccionar bolos com pouco açúcar ou usar abundantemente as teclas “seleccionar-copiar-colar” da sala dos computadores. E para quê queimar as pestanas a estudar Química? Não existe, em alternativa, uma panóplia de disciplinas muito mais fáceis que, diz o “pedagoguês”, desenvolvem “novas competências e dinâmicas de interactividade”? Quanto aos professores, sobretudo com o actual modelo de avaliação, é sem dúvida bem mais fácil e propiciador de sucesso na carreira ser “ensinante” de Área de Projecto, nas quais os alunos invariavelmente obtêm melhores resultados, do que meter mãos à tarefa de dar aulas de Física ou Matemática.


A degradação do ensino não começou com este Governo. O que este Governo trouxe de novo foi a capacidade de transformar essa degradação, que os anteriores procuravam negar, num sinal de modernidade e progresso. Entrar em Engenharia sem ter feito exame a Matemática deixa de ser uma aberração e passa a “inovação”. Os conteúdos não contam, o que conta é o embrulho tecnológico com que chegam às mãos dos alunos. O Ministério da Educação há muito que vive num universo de ficção. O que Maria de Lurdes Rodrigues conseguiu foi que assumíssemos que essa ficção é do domínio do grotesco e que já não nos indignemos com isso.


Devo ainda acrescentar que nas faculdades de Letras os cursos de literatura estão a ser substituídos por cursos de “ciências da cultura”… Mas não nos iludamos com a nomenclatura. O fim da interpretação e da reflexão sobre textos literários é o início dos estudos de abrangência falsamente cultural onde nada se aprofunda e de tudo pouco se sabe.

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