domingo, março 22, 2009

A Presença Grega

No dia 7 de Março, saiu na Actual (pp. 12–14), com o Expresso, uma entrevista de António Guerreiro à Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, Professora Catedrática Jubilada da Universidade de Coimbra. É essa entrevista que a seguir se reproduz, com algumas emendas e notas.

 

A presença grega

A literatura, a cultura e a arte gregas são o território de Maria Helena da Rocha Pereira, uma universitária insigne.

 

Apesar dos constrangimentos que as reformas sucessivas do ensino secundário impuseram aos estudos do Latim e do Grego, nos últimos anos têm sido publicados muitos trabalhos e traduções de um reputado grupo de classicistas. A professora Maria Helena da Rocha Pereira é a decana da disciplina, uma universitária (de Coimbra) que alcançou um vasto prestígio e autoridade, reconhecidos muito para além dos meios universitários.

 

A professora é em Portugal a representante mais ilustre de uma disciplina, os estudos clássicos, que era até ao final do século XIX, a disciplina mestra das Humanidades, mas é hoje um resíduo na formação universitária...

Na verdade, é uma disciplina que tem perdido muitos alunos. Há hoje um endeusamento da tecnologia, não da ciência. A cultura clássica está na base de toda a cultura europeia. Quando na reforma de 1957 se introduziu a disciplina de História da Cultura Clássica, comum a todos os cursos de Letras, esta foi muito apreciada tanto na Universidade de Coimbra como na de Lisboa. Nessa época, os alunos tinham tido alguns anos de Latim, alguns tinham mesmo tido Grego. Eu, por exemplo, não tive Grego, só o aprendi na Faculdade. Os alunos dessa disciplina comum encontravam-se numa situação variada quanto ao conhecimento dos textos e à competência para os ler no original. Razão pela qual comecei logo a traduzir os textos fundamentais e a distribuí-los em folhas. Era o que se podia fazer na altura.

 

Não havia traduções portuguesas dos clássicos?

Havia muitas traduções, mas não eram traduções directas, eram pseudo-traduções, feitas de outras línguas. Hoje estamos mais bem servidos, nesse aspecto. Mas havia uma série de textos que os alunos tinham de conhecer para perceber as minhas aulas. Em 1959, publiquei a primeira edição da antologia Hélade, tornando acessíveis os textos fundamentais da cultura grega. Depois, traduzi obras inteiras de vários autores, por exemplo A República, de Platão. Mas não é que goste de traduzir. Tenho passado a vida traduzir por necessidade. Aquilo de que gosto é do sabor do original, sinto sempre que estou a atraiçoar. O Teatro Universitário de Coimbra, no tempo de Paulo Quintela, pediu-me que eu traduzisse A Medeia, de Eurípides. E também traduzi para eles a Antígona. Paulo Quintela fazia umas encenações maravilhosas, tinha resolvido muito bem a maneira de o coro se exprimir, algo muito difícil porque não podia ser através do canto, uma vez que não podemos reconstituir a música da Antiguidade. Era uma coisa maravilhosa ouvir os coros das tragédias gregas encenadas por ele.

 

Por qual dos três géneros canónicos, o épico, o lírico e o dramático, se sentiu mais atraída?

É difícil dizer. Há quem diga que eu gosto sobretudo da tragédia. Talvez seja verdade. Porque foi o fascínio pela Oresteia, de Ésquilo, um dos factores que fizeram com que escolhesse o curso de Clássicas. Eu andava no Liceu, tinha 13 anos, e li uma excelente tradução francesa da Oresteia e fiquei maravilhada.

 

Entrou para a Faculdade sem saber Grego. Ao fim de quanto tempo estava em condições de ler e apreciar os textos?

No fim do curso conseguia ler os mais simples. Depois fui estudar para Oxford e um dos professores, ao saber que eu tinha apenas quatro anos de Grego, disse-me: "A Senhora é capaz de ler no original, à primeira vista, um texto seguido, mesmo de Píndaro e Ésquilo?". Eu respondi: "Desses autores, não".

 

Quando acabou o curso foi logo com uma bolsa para Oxford?

Não imediatamente. Fiquei ainda cá três anos, no Porto, em casa dos meus pais. E durante esses três anos fui estudando e preparando aquilo que desejava que fosse a minha tese de doutoramento, que acabou por ser "Concepções Helénicas de Felicidade no Além, de Homero a Platão". Durante parte desses três anos ainda ensinei no recém-fundado Centro de Estudos Humanísticos, que foi o embrião da Faculdade de Letras.

 

Nessa tese faz uma leitura "literária" de Platão?

Não é propriamente um estudo filosófico, para o qual não teria competência, mas um estudo dos vários aspectos complexos d' A República, também enquanto obra de arte. Em Oxford, a Faculdade de Litterae Humaniores (era assim que se chamava) compreendia a Filosofia Antiga. Achava-se, e muito bem, que para compreender a Filosofia Antiga era preciso saber ler no original.

 

Sentiu uma grande diferença (nos métodos, nos objectos de estudo) entre aquilo que tinham sido os seus estudos e aquilo que Oxford lhe proporcionou?

Lá fui confrontada com uma diversidade de assuntos que estavam completamente ausentes dos estudos, em Portugal. Eu tinha o estatuto de "estudante reconhecida", não pertencente a nenhum College, mas já licenciada por aqui e tendo direito a um Director de Estudos, que foi o professor Dodds, autor de um famoso livro, Os Gregos e o Irracional. Lá aprendi Crítica Textual, Paleografia Grega, Epigrafia, enfim, tudo isso que me faltava. E estudei os vasos gregos, com o maior especialista da época, John Beazley.

 

Por cá, imperava a ideia de que o Latim e o Grego, enquanto "línguas mortas", deviam ser objecto de uma aprendizagem muito voltada para a gramática e para o exercício mecânico da tradução.

Sim, os textos eram meramente campos de exercício. Imperava aquele ditado: "Conjuga e declina, saberás a língua latina". Foi com essa visão asfixiante que eu quis acabar. É certo que essa aprendizagem implica um exercício de atenção e de destreza mental que têm de existir. Mas é muito pouco, em relação a toda a riqueza cultural e literária dos textos da Antiguidade. Por exemplo, assistir ao nascimento da ciência, nos Gregos, é uma coisa maravilhosa. Pouca gente sabe que o movimento da Terra à volta do Sol foi descoberto por um Grego, Aristarco de Samos. Mas isso causou a indignação de outros sábios. E depois Ptolemeu, que teve uma grande influência, negou esse movimento. E essa descoberta ficou congelada até ao Renascimento, até Copérnico.

 

A massa dos textos da Antiguidade que nos chegaram é apenas uma ínfima parte do que foi escrito. Como se sente o estudioso perante esta falta?

De um modo geral, chegaram-nos fragmentos ou citações feitas por outros. Mas vão ainda aparecer muitas coisas. Sabe-se que a erupção do Vesúvio, que destruiu Pompeios e Herculano, reduziu a cinzas a biblioteca de um filósofo. Tudo leva a crer que nessa biblioteca de papiros havia muitas obras dos filósofos gregos. Por enquanto não há meio de desenrolar esses papiros sem que eles não se desfaçam por completo. Pelo que os especialistas resolveram aguardar até que haja condições técnicas para os ler. E estão sempre a aparecer papiros. Muitos, no Norte de África, porque o clima e o solo arenoso favorece a conservação. Outros, noutros lados.

 

A massa documental tem vindo a ser aumentada?

Pois tem, com descobertas constantes. Há autores cuja obra foi bastante ampliada.

 

Também trabalhou na edição de textos?

Sim. Do Latim, tenho a edição (a primeira que fiz) de textos de Pedro Hispano, para efeitos da história da Medicina. Durante muitos anos andei pelas bibliotecas da Europa atrás dos escritos de Pedro Hispano. Tanto quanto se sabe, não há nenhum desses escritos em Portugal. Foram livros utilizadíssimos para o ensino, quer na Medicina quer na Filosofia.

 

Onde é que os encontrou?

A maior parte na Inglaterra, mas também em França e na Itália. E, surpreendentemente, uma vez fui à Polónia, com um grupo de historiadores de Medicina de vários países, e o director de uma biblioteca mostrou-nos algumas preciosidades. Uma delas era a matrícula de Copérnico, que estudou em Cracóvia, e a outra era um manuscrito de Pedro Hispano que eu não conhecia. Mas voltando a meu trabalho filológico, a coisa mais importante que fiz foi a edição crítica de Pausânias, para a Biblioteca Teubneriana (uma colecção de edições críticas de textos gregos e latinos) para o qual fui convidada pela Academia das Ciências de Berlim.

 

Passou algum tempo na Alemanha?

Não. Passei por Berlim mas só consegui ir à Alemanha há pouco mais de dez anos. Fui representar Portugal num congresso, em Bona, que era então a capital, na parte relativa às Letras. E aproveitei para ficar mais tempo e ir a Berlim.

 

Mas sabe Alemão...

Estudei no Liceu. Precisamente no ano em que devia começar a estudar uma língua estrangeira, foi introduzida a possibilidade de optar entre o Inglês e o Alemão. E eu pensei que queria estudar as duas e começava pela mais difícil. Foi uma das melhores decisões da minha vida.

 

Wilamowitz e toda a tradição filológica alemã foram importantes para si.

Muito. O professor de quem falei há pouco, que me perguntou se eu sabia traduzir à primeira vista, era alemão, tinha fugido da Alemanha, e tinha sido discípulo de Wilamowitz . A Inglaterra e a Alemanha são os dois países mais importantes no domínio da filologia clássica. É curioso que não sejam os países latinos. Ainda hoje se estuda muito mais Latim e Grego na Alemanha e na Inglaterra do que nos países latinos. Mas essa edição do Pausânias, fi-la sem sair do país. Naquele tempo mandaram-me tudo em microfilmes que eu mandava revelar porque os meus olhos não aguentam aquele tremular das máquinas de ampliar e dos computadores.

 

Trabalhou mais sobre a cultura e os textos gregos do que sobre os latinos...

Sim. Mas também trabalhei razoavelmente sobre a cultura latina. Há um volume que vai sair agora, na Gulbenkian, precisamente sobre a parte romana da cultura clássica.

 

E também traduziu do Latim?

Fiz uma antologia, mais pequena mas comparável à que fiz para os textos gregos.

 

E aqui, em Portugal, no tempo em que foi estudante, quem eram os grandes representantes dos Estudos Clássicos?

Em Lisboa, havia o Epifânio, o José Joaquim Nunes, o Leite de Vasconcelos, que se tornaram mais famosos pelo trabalho dedicado à filologia portuguesa. Aqui, em Coimbra, havia o professor Carlos Ventura, de quem fui Assistente, que aliás me aconselhou vivamente a continuar os estudos em Oxford, numa altura em que aqui ainda não admitiam senhoras.

 

Mas acabaram por admiti-la...

Havia um exemplo ilustre noutra área, Carolina Michaëlis, que foi convidada para ser professora Catedrática. Mas a primeira a prestar provas nesta Universidade fui eu.

 

Sentiu essa prova como uma marca histórica?

Tinha pelo menos a consciência das dificuldades. A secção de Clássicas, com a partida de um professor para Lisboa [o Professor Rebelo Gonçalves], ficou com uma vaga. E o professor Carlos Ventura propôs o meu nome ao Conselho, tinha acabado de chegar de Oxford. Começou aí, não sem dificuldades, a minha carreira académica. Fui integrada num mundo de homens. Tudo isto visto hoje, percebemos como as coisas mudaram muito.

 

O que é bastante relevante no seu trabalho é o facto de se ter desembaraçado de um certo positivismo, da consideração dos textos como meros documentos históricos...

O professor Ventura, de quem fui Assistente, aceitava as minhas ideias. Eu achava que estudar Grego e não fazer ideia nenhuma dos monumentos era uma falta terrível. E pedi-lhe autorização para fazer umas sessões com projecções para mostrar os monumentos de Atenas e de Roma. Mas foi difícil de conseguir porque não havia máquinas de projecção na Faculdade. Tanto que a primeira sessão que fiz foi na Faculdade de Ciências. Mas depois consegui fazer outras já em Letras. Até há uma história curiosa que eu contei há tempos, numa homenagem ao meu falecido colega de Geografia, professor Fernandes Martins. Um professor de Medicina que tinha sido condiscípulo do meu pai, e que era amador de fotografia, tinha uma dessas máquinas muito antigas de projecção e disse-me que me emprestava a máquina mas na condição de ser o professor Fernandes Martins a trabalhar com ela. E este aceitou, o que deixou toda a gente na Faculdade boquiaberta, ao ver um professor a ajudar um assistente.

 

E começou a interessar-se por Arqueologia. E também por vasos gregos...

Arqueologia e Arte. Mais tarde haveria de ensinar História da Arte Grega. E fui comissária científca de uma exposição de vasos gregos, no Museu Nacional de Arqueologia, partindo de uma colecção particular, dos vasos dos próprio museu e também, e onde também havia o vaso da colecção Gulbenkian, que é o melhor de todos. Eu tinha estudado com o professor Beazley, que é o maior especialista mundial de vasos gregos. Foi sempre algo que me fascinou, os vasos gregos, desde a primeira vez em que os vi no Louvre. O meu Director de Estudos, em Oxford, o professor Dodds, disse-me um dia: "não quer ir ouvir o professor Beazley? Olhe que um dia, se disser que esteve em Oxford nesta altura e que não o ouviu, ficarão admirados". E eu comecei a ir às aulas dele. Ele já sabia que tinham aparecido vasos gregos em Alcácer do Sal, os primeiros que apareceram em Portugal.

 

Viajou muito de propósito para ver arte grega nos museus?

Em todos os continentes. Conto-lhe uma pequena anedota. Quando o Metropolitan Museum de Nova Iorque comprou um vaso que é considerado o melhor de todos, por um milhão de dólares, eu, por altura de uma viagem ao Canadá, quis ir também a Nova Iorque para ver o vaso. Tive que pedir um visto no consulado. Na entrevista, a senhora perguntou-me porque é que eu queria ir a Nova Iorque. Eu disse-lhe que queria ver os vasos que estavam no Metropolitan. A senhora achou muito estranho, até eu lhe dizer que era professora de Arte Grega.

 

E à Grécia, tem ido muitas vezes? O que é que sentiu, da primeira vez?

Atenas não é uma cidade belíssima como Roma, por exemplo, porque foi estragada, foi desprezada durante o domínio turco. Mas tem aquela maravilha que é a Acrópole. E quando pela primeira vez me aproximei da Acrópole, era já ao pôr-do-sol e os mármores ficam todos róseos (a cor dos mármores vai mudando conforme a hora do dia), eu quase não acreditava no que estava a ver. Naquele tempo ainda era possível entrar dentro do Parténon. Agora, já não é, senão desfaz-se, com os milhões de turistas. Resistiu a tudo mas não a tanto. E Delfos também é fascinante.

 

Como é que sentiu o diálogo entre os textos literários, a arquitectura e os objectos artísticos?

São inseparáveis. No fundo, trata-se sempre do mesmo sentido do Belo.

 

Quando diz isso, não podemos deixar de pensar em A Origem da Tragédia, de Nietzsche, um filósofo filólogo, e da sua concepção do apolíneo e do dionisíaco.

A Origem da Tragédia é, como alguém disse, um erro genial. O livro do professor Dodds, Os Gregos e o Irracional, abarca também essa questão da diferença entre o dionisíaco e o apolíneo e mostra que ela é muito mais complicada.

 

Mas o que é um facto é que essa oposição funda duas categorias estéticas.

A religião dionisíaca é muito complexa, faz apelo a forças irracionais, sem dúvida, e ao mesmo tempo sai dela uma das mais espantosas criações da civilização grega que é teatro, isto é, as grandes celebrações atenienses em honra de Diónisos eram essas. Por todo o lado têm aparecido tabuinhas que têm a ver com a religião dionisíaca. Esse assunto está ainda muito confuso, tem que ver com a sobrevida no além, há algumas ligações com o orfismo que ainda não estão bem classificadas. Há muitas coisas que nos escapam. Mas que Apolo é o Deus da perfeição, não restam dúvidas.

 

A professora também escreveu muito sobre poetas contemporâneos.

A cultura grega nunca foi para mim algo enterrado historicamente. E por isso trabalhei bastante sobre a sua presença na literatura portuguesa contemporânea, verificando que os melhores poetas contemporâneos têm uma predilecção marcada, um sentido profundo do helenismo: Sophia de Mello Breyner, Eugénio de Andrade, Miguel Torga, etc.

 

Nos últimos anos, sobretudo graças a um conjunto de universitários que têm feito óptimas traduções, o trabalho dos classicistas tornou-se muito mais visível publicamente.

Há de facto um grupo muito bom, tanto aqui em Coimbra como em Lisboa, o que significa que nem tudo está perdido. A verdade é que já há muitos anos começámos a fazer traduções tanto do Grego como do Latim e elas têm tido êxito.

 

As reformas do ensino secundário não têm sido muito favoráveis ao estudo do Latim e do Grego.

Pois não, e sempre que se tem proporcionado, tenho escrito sobre isso. Mas essas reformas também não têm sido muito saudáveis para o Português e para a Matemática. Há matérias que são fundamentais e têm que se aprender pelos caminhos próprios.

 

Neste momento há uma série de constrangimentos que tornam praticamente impossível estudar Latim e Grego no secundário.

Pois, e isso sem dúvida que atrofia os estudos clássicos na universidade. Pelo menos o latim devia ter outra presença no ensino secundário. É aceitável que um aluno vá para Direito sem saber Latim, se o Direito romano está na base do Direito europeu?

 

A cultura grega e latina servem-lhe de mediação para observar o mundo contemporâneo?

Vejo sempre tudo através dessa mediação e vejo que há fenómenos que se repetem, características positivas e negativas dos tempos actuais que também existiram na Antiguidade. Uma coisa por exemplo é a República romana, a chamada Pax Romana, outra coisa é a decadência romana... e verificamos que algo se está a repetir, ao contrário da ideia dos historiadores e que a História não se repete: por exemplo, a perda dos padrões éticos, como no final do Império Romano.

 

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