Transcrevo a crónica de Jorge Silva Melo que saiu hoje no suplemento Mil Folhas do jornal Público (página 5).
«E sem latim?
Ainda naquela Rua Anchieta que, ao sábado, se ornamenta de preciosos livros, abro o belo volume negro dos "4 Poètes Portugais", edição (1970) da Gulbenkian e das Presses Universitaires de França, que acabo de encontrar.
Os meus amigos estrangeiros pararam, estávamos na esquina da Bertrand. Ávido, eu procurava, em Cesário, para lhes ler em voz alta e no local certo, o que ele diz da jovem actriz que sobe o Chiado revendo o seu texto ao ir para um teatro, que eram, todos, ali por perto. Mas, ao abrir, encontrei foi "O Sentimento de um Ocidental", não resisti, e li, em francês, os versos das "Ave-Marias". Há décadas que o faço, mal encontro um exemplar desses que nunca tenho, sempre ofereci (com selecção, tradução e prefácio de Sophia).
Lembro-me, há já quase trinta anos, da dificuldade que tive, nesta mesma esquina, em explicar a René Allio e a Christine Laurent o significado de "taciturnité", a rara maneira que o tradutor teve para verter a sorumbática "soturnidade" do poema de Cesário.
Mas, hoje, vejo o olhar parado de um dos meus interlocutores, homem que seria, há anos, de meia-idade, e, agora, ainda será jovem, entre os 30 e os 40 anos. "E porque é que se chama 'Angelus' esse poema?", acaba por me perguntar. Explico-lhe que é a tradução de "ave-marias", explico-lhe o que são, maneira de as igrejas anunciarem o cair da noite, o regresso a casa, o fim do trabalho. Ele, que até é homem culto, só se lembra de Millet, dois camponeses dobrados sobre o campo lavrado. "Mas porque é que um poema tão urbano como esse recorre à imagem do campo?" Já não tive tempo para o esclarecer que a noite cai no campo e também na cidade e que a igreja, onde está, onde chegou, o assinala, convidando ao recolhimento, tentando superar (naquela mesma hora em que, para os laicos, desperta) o "absurdo desejo de sofrer": os sinos da Igreja dos Mártires desataram a repicar, enchendo a agitada rua de uma canção que parecia não mais ter fim.
O meu interlocutor não tivera educação religiosa, para ele um sino é qualquer sino, não lhes entende a língua. E, mesmo no centro do Chiado, ignora para que tocam os carrilhões dividindo o dia nas suas tarefas e loas.
E ponho-me a pensar se haverá muitos portugueses (dos poucos que abrem livros) que, ao abrirem o Cesário, ainda sabem o que são estas "ave-marias" e porque assim se chama esta primeira parte do mais belo dos poemas. Já quase ninguém o sabe, aposto. Em próximas edições, haverá também para isso nota de rodapé, essa tremenda lápide que, em memória do sentido perdido, assinala as palavras mortas. Sim, que as palavras morrem e os livros vão-se enchendo de explicações que atestam o bom comportamento do defunto, os seus bons serviços.
Nunca pensei ter de explicar a alguém o que são, na divisão do dia, as "ave-marias", nem mesmo o "angelus" a franceses, muito menos pensei que teria de traduzir (como?) "Stabat Mater" (mas tanta gente me pergunta, que surpresa estranha, eis-me de outros tempos eu que me pensava tão de agora) e que, quando digo (e digo tantas vezes) "Ecce homo", o meu interlocutor talvez pense que estou a falar de alguma parada "gay".
Foi-se, com a vida, o latim da igreja, foi-se, das escolas, o latim. Até o de Virgílio, "lacrimae rerum". E como, na Assembleia, faria bem um pouco de Salústio ao falar-se das SCUT.
E nós, que "vivemos dos nomes" (estupenda sentença de Joyce que me recupera Antonio Tarantino), cá vamos falando, filhos de língua incógnita, vivendo ao lado de sinos que tocam sem sabermos porquê, deixando esvaírem-se as melhores das poesias, devolvendo-as aos fariseus que da vida nada sabem, prescindindo de saber.
Vem, agora, o Papa autorizar o regresso do latim ao eco sem nome das basílicas. Eu queria era que fosse nas escolas, onde a língua se molda, onde se deveria era buscar a forma para nomear esta ansiedade de se ser rapaz ou rapariga.
"Não se pode viver sem Rosselini!", berrava nas ruas o cineclubista apaixonado por Bertolucci. E sem latim, podemos?
Podemos ignorar o carrilhão que nos atropela a conversa, passar incólume ao lado dos fundamentos daquilo que pensamos, seguir o nosso caminho sem ver as pedras que os romanos (os escravos dos romanos, claro) transportaram, podemos ignorar tudo o que nos fez viver assim, bastardos, neste eterno presente nascido esta manhã na revista do dia? Podemos viver sem latim?
(E eu que nem bom aluno fui, ai como me arrependo.)»